No último dia 25 de agosto, um domingo, 1,8 milhão de estudantes brasileiros submeteram-se ao Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM). Este exame foi implantado pelo Ministério da Educação em 1998. Na edição deste ano, as provas do ENEM continham 63 questões de múltipla escolha e uma redação. Os elaboradores do ENEM procuram avaliar quatro competências básicas dos alunos, articulando conteúdos da vida cotidiana e conteúdos conceituais das diversas disciplinas: domínio de linguagens, compreensão de fenômenos, enfrentamento de situações-problema, construção de argumentações e elaboração de propostas de intervenção na realidade.
O que parece ser uma iniciativa importante para a educação brasileira, vem se transformando num enigma para a grande imprensa brasileira e para muitos alunos de Ensino Médio. Por culpa de uma indecisão política do Ministério da Educação, a grande imprensa se pergunta, a cada exame implementado, qual o objetivo da iniciativa. Na semana seguinte ao último ENEM, dezenas de reportagens procuravam desvendar o enigma. Todas estavam profundamente equivocadas.
Em um site especializado na área educacional, informava-se que “como o exame não tem a pretensão de selecionar candidatos, como ocorre nos vestibulares, as questões são diretas, sem surpresas ou pegadinhas". Outro órgão de imprensa questionou o custo de um exame dessa natureza que, segundo o jornal, não avalia alunos e compete com outros instrumentos de avaliação de desempenho das escolas.
O ENEM não possui “pegadinha” porque quer superar este erro pedagógico e não porque não tem pretensão de selecionar candidatos. Façamos uma comparação: uma boa entrevista para selecionar um candidato à uma vaga numa empresa é marcada por “pegadinhas”? Ou seriam as perguntas objetivas, focadas nas habilidades do candidato que orientam uma boa entrevista? Pelo mesmo motivo, devemos nos perguntar o que persegue uma “pegadinha” de vestibular: Atenção? Malícia? As perguntas elaboradas por Sócrates eram caracterizadas por “pegadinhas”? A “pegadinha” é um erro de percurso e um engano pedagógico.
O ENEM, em sua origem, também não tinha como objetivo avaliar o sistema educacional. O debate que envolveu muitos educadores na sua elaboração (nem sempre, é verdade, sustentado politicamente no interior do Ministério da Educação) foi a substituição dos exames vestibulares do país, procurando criar um exame nacional único.
Precisamos compreender o contexto de criação do ENEM a partir das várias intervenções governamentais, principalmente as ocorridas na primeira gestão FHC, que envolveram o ensino fundamental e médio.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) constituem um bom exemplo. Os PCNs de Ensino Fundamental apresentam uma proposta de estrutura curricular multidisciplinar, a partir do que se denominou “temas transversais”. A intenção era a eleição de temas da vida dos alunos (sexualidade, meio ambiente, ética) que teriam que ser tratados por todas disciplinas. Assim, o aluno perceberia como a matemática, a história e a física contribuem para compreendermos e atuarmos em relação ao meio ambiente. Qual o interesse pedagógico desta proposta? Aproximar o estudo formal aos problemas reais. Nenhum fenômeno pode ser explicado com clareza por uma disciplina isolada. O mundo, enfim, é interdisciplinar. Os PCNs de Ensino Fundamental caminharam para superar um pouco tal separação.
Os PCNs de Ensino Médio, entretanto, avançaram mais. Introduziram uma proposta interdisciplinar. E ainda sugeriram que 25% dos conteúdos curriculares fossem regionalizados. Uma pequena revolução pedagógica. A interdisciplinaridade é mais ousada que a adoção dos temas transversais, justamente porque propõe que as várias disciplinas (no caso, da mesma área de conhecimento: linguagens, humanas, ciências naturais) dialoguem entre si para elaborar um programa conjunto.
O ENEM, enfim, deu um passo ainda mais ousado. O coordenador do curso de pós-graduação em educação da USP, professor Nílson José Machado, consultor que participou da elaboração do ENEM, em um debate realizado no sul de Minas Gerais, afirmou que esse exame se baseou em dois princípios: a) uma compreensão conceitual transdisciplinar; b) a adoção do conceito de inteligências múltiplas. A transdisciplinaridade significa um verdadeiro amálgama entre as várias disciplinas. Quando isso ocorre, fica difícil saber exatamente onde se localiza um conceito de uma disciplina e o conceito de outra. O que se procurava era criar questões (que os autores do ENEM denominaram de situações-problema) que obrigassem os alunos a lançar mão de vários conhecimentos, de várias áreas, para resolver um problema complexo. Por este motivo, o ENEM teria poucas questões (porque envolvem muitos conceitos), desde o início. Cada questão deveria valer por várias dos exames por disciplina. Mas, por qual motivo se perseguia esta tal transdisciplinaridade? Porque os elaboradores se apoiavam no conceito de inteligências múltiplas. Este conceito foi construído pelo professor Howard Gardner, um dos coordenadores do Projeto Zero, da Universidade Harvard. Gardner, ao pesquisar o funcionamento da mente, sugeriu (à época da criação do ENEM) que existem sete sistemas de tomada de decisão humana que são independentes entre si. Cada sistema de tomada de decisão foi denominado pelo autor de inteligência (retomando a origem latina da palavra: inter + elegere, ou capacidade de decidir). São elas: inteligência lógico-matemática, inteligência lingüística, inteligência intrapessoal (arrisco resumir como autocontrole), inteligência interpessoal (a capacidade de convívio), inteligência espacial, inteligência musical e inteligência físico-cinestésica (aquela, do gênio Pelé, de domínio do movimento).
As questões elaboradas pelo ENEM, então, têm como foco a avaliação do desenvolvimento dessas sete inteligências humanas e a capacidade de resolução de situações-problema. Esta é a grande novidade. Não são questões mais fáceis. Apenas não possuem “pegadinhas” ou exigem memorização de um conjunto totalmente irracional de informações, que logo serão esquecidas. É verdade que o ENEM deste ano parece ter fugido um pouco dos objetivos originais. Poucas questões perseguiam a transdisciplinaridade. Este é o caso da questão 31, que articulava a concentração de mercúrio com o desenvolvimento industrial e a variação das marés. Mas este vacilo não joga por terra o objetivo pedagógico do ENEM. O erro do Ministério da Educação é não definir uma postura política tão ousada quanto ao princípio pedagógico do ENEM. É necessário definir qual a relação do ENEM com os exames vestibulares. Tal como se discutia, nos bastidores, quando ele foi criado.
RUDÁ RICCI